15 de novembro de 2007

A corte

Era um sábado cinzento e mais uma vez ele acordava para ir desempenhar suas funções reais. Era rei, mas menos por vocação do que pelo princípio hereditário de sucessão. Mesmo assim, desempenhava seu cargo: sentava no trono com olhar intenso, fazendo referência ao infinito, e todo o resto da descrição charmosa - e essa descrição, o leitor que se vire, depende dele mesmo: se tiver imaginação verá coisas interessantes; se não tiver, não merece ver nada mesmo.

Acordava e ia ao banheiro, jogava um ou dois baldes de água sobre o corpo - banheira não havia - antes de se ensaboar - nem súditos para ensaboá-lo, era um rei tímido - e, enquanto via a água bater, pensava em aquilo como alguma analogia para sua vida política com a corte. Fosse um chuveiro, a analogia seria outra, de uma vida fluida com a corte, mas que embora fluisse bem acabaria no ralo. Ou não pensaria em analogia alguma, tanto faz, isso é só um gancho pro outro parágrafo mesmo.

Por que o problema de ser rei antes fosse lidar com o povo. O povo ainda era bem claro, se dividia entre os que morreriam por ele e os que sonhavam queimá-lo; embora também houvesse os que a opinião sempre oscilava, principalmente por causa dos tablóides - jornal havia.

Mas a corte era confusa, mais do que isso, enganosa. Os nomes se misturavam com os apertos de mão e os copos de vinhos durante várias noites, às vezes consecutivas. E embora não tivesse memória boa, de vez em quando ele acertava alguns palpites. Já tinha mandado meia dúzia para guilhotina por conspirar contra ele. Cinco com razão, outro foi por ter dormido com a rainha- o que até tem lá sua razão. O segundo a ser mandado para guilhotina era o antigo colaborador do tablóide, que foi no final das contas morto por expor uma conversa secreta do rei com um acessor. Muito embora, o narrador que vos fala ache muito mais divertido o artigo que ele fez expondo as fantasias sexuais da rainha, algo envolvendo mel, chantily, um punhado de feno e três súditos, sendo um deles eunuco. Mas o rei impediu a publicação, só não conseguiu descobrir quem havia conseguido tal informação.

Além dos que já foram pra guilhotina, mais algo em torno de 32 funcionários do castelo conspiravam contra ele, de um total de 33 pessoas que habitavam o castelo. Pois, além dos 32 funcionários, havia a mãe de uma das cozinheiras, que morava no castelo por compaixão da rainha, mas o rei escolhia sua locação: um quarto de pedras sempre exposto ao frio inóspito do inverno; e um outro quarto qualquer durante as outras estações. Mas a senhora aguentava bem, havia sido criada no interior, sempre diziam, pois ela já não pronunciava uma palavra. Não por não ter dentes, isso só atrapalharia a pronuncia, a causa da mudez era mesmo um acidente quando era mais nova, no aniversário de 63 anos a estrutura da festa caiu sobre ela, deixando-a muda e com a memória bastante prejudicada. Embora o acidente prejudicasse bastante a vida da senhora, fazia o rei ter menos uma pessoa contrária a ele em seu castelo.

Acompanhando a história até agora, o leitor pode achar que o rei é do tipo que faz tudo para os outros o odiarem, ou de repente é algum homem que carrega uma mágoa do passado, uma espécie de Rick Blaine, mas sem o charme, e sem a voz, e sem o carisma, e sem o bar. Na verdade, ele até carrega uma mágoa do passado, de quando a antiga rainha fugiu em um cavalo. Na verdade, um bode, com o ferreiro da cidade e mais uma mala, carregando roupas intimas e um candelabro de ouro.

Mas a mágoa não alterou a essência do que ele queria, sempre tentou ser alguém que agradasse a corte. Antes de maneira bondosa. Na verdade, de maneira babaca. O que o fazia muitas vezes se perceber passado para trás, embora na maioria das vezes que era passado para trás ele não percebesse.

O episódio da fuga da rainha só mudou a maneira de agir, agora ele achava que conseguiria o objetivo de uma maneira inescrupulosa. Se impondo sempre pelo insulto e pelos xingamentos, o que não funcionava muito, embora fosse bastante engraçado. E no geral pode-se dizer que estava dando mais certo do que a estratégia antiga.

Até esse sábado.

Mal sabia ele que enquanto se ensaboava, dois de seus súditos planejavam sua morte. A idéia inicial era fazer um plano sofisticado e que ninguém mais soubesse da história. Mas enquanto eles arquitetavam o plano, em um quarto próximo à cozinha do castelo, que era o lugar mais distante dos aposentos do rei, o funcionário mais próximo do rei acabou ouvindo o plano todo, detalhe por detalhe, até o momento final.

Então logo quis participar também, entrou na sala já dando três palpites para melhorar o plano. Daí as cozinheiras também queriam saber qual era o assunto, e em pouco tempo o resto do castelo, até chegar aos ouvidos do rei. Mas ai já era tarde demais, o plano não havia sido feito, mas naquelas circunstâncias um plano pouco importava. Sobraram tapas, pontapés, algumas palavras gritadas. Nunca mais se ouviu falar do rei.

2 comentários:

Ricardo Goulart disse...

E jaz o melhor post do corredor polonês.

Leo.JPG disse...

As fantasias dessa Rainha nem o Dr Freud explica. Quanto ao Rei: o que aconteceu valeu um post. Na minha humilde opinião já tá de bom tamanho.